Territórios, caminhos para a
educação integral e inclusiva

O Programa Itaú Social UNICEF entrou em uma nova etapa. No dia 5/10, as OSCs participantes do percurso formativo iniciaram a Estação 2: Olhar para fora. Após revisitar suas origens, missão e pessoas que formaram sua história, o desafio das organizações agora é ampliar seu olhar sobre o território, por meio da escuta das crianças e adolescentes atendidos, suas famílias, além de outros sujeitos e instituições locais. 

Mas o que entendemos por território?  

Milton Santos
Milton Santos (reprodução)

Partimos do entendimento do geógrafo Milton Santos (1926-2001):

“O território usado é o chão mais a identidade. A identidade é o sentimento de pertencer àquilo que nos pertence. O território é o fundamento do trabalho, o lugar da residência, das trocas materiais e espirituais e do exercício da vida.”

(SANTOS, 1999)

Nesse sentido, o território não é apenas o espaço físico, geográfico, mas abarca as relações socioeconômicas e políticas, assim como as representações conceituais, artísticas, afetivas firmadas nele. Ou seja, o território envolve a dinâmica das pessoas e os grupos sociais que nele habitam ou que com ele interagem de diferentes formas: mais ou menos harmônicas, complementares ou contraditórias. 

A articulação com o território é fundamental no conceito de educação integral e inclusiva adotado no Programa, como um de seus três eixos, ao lado do desenvolvimento institucional e do desenvolvimento integral de crianças e adolescentes

O desenvolvimento integral considera não apenas o aspecto intelectivo, mas as diferentes formas, linguagens e caminhos pelos quais as crianças e os adolescentes aprendem e constroem sua identidade, sua maneira de ser e estar no mundo, em contato com outras pessoas, o meio ambiente e a sociedade.

Assim, para que políticas e ações de educação integral garantam de fato as condições para o desenvolvimento pleno das novas gerações, é preciso levar em conta o território, suas características e dinâmicas. É nesse espaço vivido que as pessoas constroem suas subjetividades, seu modo de ser, estar e se relacionar com o outro – com suas diferentes culturas, modos de pensar, sentir e agir no mundo.

Assista ao nosso vídeo “Desenvolvimento integral e território:


Território educador, educação territorializada: entrevista com Beatriz Goulart

Beatriz Goulart
Beatriz Goulart (reprodução)

Para aprofundar a reflexão sobre as relações entre território e educação, as potencialidades de articulação local pela garantia dos direitos de aprendizagem de crianças e adolescentes no atual contexto, conversamos com a arquiteta-urbanista-ativista Beatriz Goulart.

Beatriz desenvolve pesquisas e projetos de espaços educativos escolares e urbanos através de metodologias participativas. Professora da Fábrica-Escola de Humanidades, de Ensino Médio, também é fundadora e membro do Centro de Referências em Educação Integral.

Na conversa, a educadora introduz alguns conceitos importantes aplicados a projetos que desenvolve no sentido em prol da construção de territórios educativos. Essa perspectiva, que em alguns momentos parte da ótica escolar, amplia-se por meio da articulação com a comunidade do entorno e outras organizações locais. Confira a entrevista a seguir. (As referências bibliográficas estão ao final.)

Programa: Quais são as possíveis relações entre o território e a educação?

Beatriz Goulart: Parto da definição de território proposta por Milton Santos. Para ele, o espaço é formado por um conjunto indissociável, solidário e contraditório de sistema de objetos e sistema de ações não considerados isoladamente, mas como um quadro único no qual a história se dá. Aliado a isso, baseio-me na concepção de educação que considera um sistema educativo integrado ao longo de toda vida, composto pela educação formal, não formal e informal.

Nesta perspectiva, território e educação se correlacionam através dos objetos e das ações, cujas qualidades e propósitos interferem diretamente na qualidade da educação e do território. Isso vale tanto no contexto do ambiente escolar quanto no ambiente urbano. Há uma pedagogia dos lugares, assim como uma territorialidade das ações educativas. Os espaços ensinam e a pedagogia cria ambientes. É uma via de mão dupla. Tenho tratado essa equação sobre um tripé de condicionantes a serem sempre consideradas: território, currículo e gestão.

Programa: O que é a “cartografia da ação”? Como essa proposta contribui com as iniciativas de articulação entre educação e território?

Beatriz Goulart: A cartografia da ação social é uma teoria da ação proposta por Ana Clara Torres Ribeiro (socióloga falecida em 2011) no diálogo entre a Sociologia, Geografia e Educação. Trata-se de uma proposta teórica e metodologia dialógica e dialética que integra o campo das produções científicas e o da produção social, a partir dos conhecimentos produzidos pelas pessoas nos lugares onde vivem. Uma cartografia sempre incompleta, que “se faz fazendo”, segundo as palavras da socióloga:

 Ana Clara T. Ribeiro
Ana Clara T. Ribeiro (reprodução)

Como carta, o mapa não aparece como instrumento isolado ou como bela ilustração de textos, exacerbando critérios estéticos, mas sim como ferramenta analítica e como sustento da memória dos outros. Neste sentido, propõe-se uma cartografia incompleta que se faz, fazendo. Uma cartografia praticada, que não seja apenas dos usos do espaço, mas também utilizável, de forma que ocorra a sincronia espaço-temporal, o que apoiaria, inclusive, o trabalho interdisciplinar. Esta seria uma forma de representação da ação que poderia alimentar narrativas e que, em vez do território naturalizado, trataria, como orienta Milton Santos (1996, p. 18), de território usado. O território não é uma categoria de análise, a categoria de análise é o território usado. Ou seja, para que o território se torne uma categoria de análise dentro das ciências sociais e com vistas à produção de projetos, isto é, com vistas à política […] deve-se tomá-lo como território usado.”  

RIBEIRO e outros, 2001-2002, p. 4.

Este conceito-ação se fundamenta no pensamento de Milton Santos, especialmente sobre a concepção de “homens lentos” (SANTOS, 1996), com o de Paulo Freire (1979) sobre a dimensão do compromisso humano, compromisso de reflexão e de consciência frente às contradições e as ambições que criam as fragmentações e as segregações socioespaciais.

As pesquisas do Laboratório Lastro, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), criado por Ana Clara Ribeiro, especialmente as realizadas nas escolas, nos ajudam a entender as microtessituras do território vivido, usado pelos estudantes no espaço escolar e no espaço urbano, onde  crianças e jovens produzem mapas registrando suas deambulações e modos de apropriação no entra e sai entre a escola e a cidade.

Homem lento: representa o homem/a mulher comum, pobre, morador/a do território que resiste à fragmentação das identidades e ao ritmo acelerado imposto pela globalização. Assim, tece relações de solidariedade no local onde vive.

Para você, quais são as potências dos territórios neste momento de pandemia, isolamento social e redução de direitos?

Como tem sido reafirmado nos diversos campos do debate crítico sobre o contexto atual, a pandemia desnudou a pobreza, a desigualdade social, étnica/racial, a ausência da garantia de direitos e a fragilidade e precariedade das estruturas dos serviços públicos, incluindo as escolas e organizações. Por outro lado, a necessidade do ensino remoto, apesar das desigualdades a que estamos sujeitos, tem aberto um campo para produção de novas narrativas, especialmente por parte dos estudantes. Sou professora do Ensino Médio de uma disciplina que trata da saúde dos ambientes. Encontro com 21 estudantes virtualmente, uma vez por semana, e estamos compartilhando nossas impressões e concepções de espaço escolar e urbano, discutindo a infraestrutura da nossa escola e do bairro onde ela se localiza. Também compartilhamos sobre nossas casas e sobre nossos sonhos. Estou surpresa com a riqueza dos relatos. 

O vínculo da escola com o espaço doméstico abriu esta fresta por onde nascem narrativas que apontam para outras possibilidades de usos e apropriação dos espaços da escola e da cidade. O movimento de solidariedade em torno da pandemia também nos abre outras formas de diálogo e planejamento em torno da função social da escola, para além de cuidarmos de garantir os direitos de aprendizagem especificamente curriculares.

Nesse sentido, voltando à pergunta, as potências dos territórios se abrirão onde passarmos a fazer com os/as estudantes e educadores/as, entre nós, e não mais “para” eles/as. Fazer junto, na perspectiva de que a escola, a OSC e a cidade seja habitada por todos, colaborativamente, solidariamente. Que organização educativa e cidade sejam bem comum, e assim sendo, passem a ser cuidadas e não mais apenas usadas.

O mito da desterritorialização, Rogério Haesbaert
Capa (reprodução)

Em seu olhar, a ideia de multiterritorialidade, desenvolvida pelo geógrafo Rogério Haesbaert, as articulações em rede de diferentes territórios, por meio do espaço virtual, oferecem caminhos para as OSCs que atuam na perspectiva da educação integral e inclusiva?

A multiterritorialidade é essência do sistema educativo integrado. Camadas de ações sobrepostas, conectadas, ainda que não tenham sido ainda planejadas nesta perspectiva. A simultaneidade se dá e é base da integração, assim como da desintegração, dependendo de como os projetos e as ações educativas, provenientes dos campos da educação não formal e também da educação escolar e familiar, tirem proveito disso ou não. 

A educação integral e inclusiva é aquela que parte da integralidade do ser abrangendo e integrando tempos, espaços e oportunidades educativas, considerando esta multiterritorialidade, as especificidades e os desafios de cada um desses campos. 

No caso do espaço virtual, é possível avançar na identificação e conexão dos pontos dessa rede, por meio de recursos que tenho chamado de dispositivos territorializantes (FARIA, 2019). Um deles é o diagnóstico participativo do território, onde o coletivo envolvido (crianças, jovens e adultos, enquanto estudantes, educadores, gestores e familiares, assim como a comunidade local) observa e reflete sobre os espaços internos e externos da instituição em questão. Uma das metodologias aplicadas nessa observação é o manual Observando a qualidade do lugar (RHEINGANTZ, 2009) que apresenta instrumentos e ferramentas de observação e avaliação dos lugares.

Pode citar iniciativas de articulação em territórios vulneráveis no sentido de garantia e fortalecimento de direitos sociais, especialmente tendo em vista crianças e adolescentes?

Na Vila de Serra Grande,  povoado de 5 mil habitantes, beira-mar da cidade de Uruçuca, sul da Bahia, desde 2012 vem se desenvolvendo um processo participativo de elaboração simultânea e integrada do projeto pedagógico e do projeto de arquitetura para a nova escola pública de educação básica. A decisão sobre o uso dos espaços e o seu cuidado farão parte do currículo, do cotidiano escolar, a partir de processos de escuta e participação, do mesmo modo como foi feito o projeto de arquitetura, mobiliário e paisagismo. 

Construção da escola na Vila de Serra Grande. Foto: Beatriz Goulart
Construção da escola. Foto: Beatriz Goulart

A escola está em obras desde 2018 e o projeto pedagógico acaba de ser concluído. Também iniciamos a elaboração da “bula” da escola, um guia ilustrado de como usar e cuidar dos espaços na perspectiva de serem espaços educadores, em diálogo com o currículo escolar e com a vida da comunidade. 

Outro ponto importante é a formação dos professores e demais profissionais da educação envolvidos, assim como a sensibilização da comunidade escolar e local, num ritual que chamamos de “batismo da escola”. Assim que a obra terminar, entraremos com as cooperativas locais para implantar os jardins e brinquedos. 

Este projeto de arquitetura foi publicado no livro Urbanismo Ecológico en América Latina (2019). Tem sido um processo intenso de conscientização territorial na perspectiva da garantia dos direitos, especialmente do direito à cidade tratado por Lefebvre (1991), ou seja, o direito a habitar a escola e a cidade, antes de construí-la. como defende Sennet em seu último livro (2018). 

Um dos convites que o Programa faz às organizações participantes do  percurso formativo é aprofundar a escuta do território. Em sua experiência com a articulação entre espaços e territórios na educação, que dicas você dá às OSCs no sentido de promover práticas mais dialógicas e participativas?

Além das colocações anteriores, minha sugestão é que tudo seja sempre construído coletivamente, inclusive o plano de trabalho e seus propósitos. quanto mais as pessoas envolvidas assumem a coautoria, mais o processo se torna legítimo e significativo, o que contribuirá para o sucesso dos objetivos propostos. 

É muito importante fazer com a equipe formadora da OSC uma revisão de conceitos e desnaturalização de preconceitos construídos ou herdados ao longo da vida. Eu gosto muito desta frase de Milton Santos:  “É preciso criar dispositivos que revertam as tendências herdadas do modo de produção precedente”. Ou seja, tendemos a reproduzir conceitos que ficam entre nós e o território, deturpando nossa visão. Assim, é fundamental pôr esses conceitos em suspenso e revê-los à luz de outras experiências.

Percebo que alguns educadores foram privados de experiências significativas com o território ou viveram em bolhas, o que acontece com todos nós. Furar essas bolhas e promover a abertura a outros olhares e sentidos é fundamental. Uma dica é que a própria equipe formadora faça um roteiro com as ferramentas de observação e avaliação apresentadas no manual Observando a qualidade do lugar (citado acima).

É interessante refletir em conjunto o que se pensa de educação e de território, desnaturalizando ideias preconcebidas e buscando ampliar o olhar em contato com outras perspectivas e experiências no sentido de promover articulações para construir tempos e espaços de aprendizagem no território.



Referências:

FARIA, Ana Beatriz Goulart de. Desenhar escola: exercício coletivo do pensamento. Dissertação de Mestrado. Faculdade de Arquitetura e Urbanismo/UFRJ, 2019.
LEFEBVRE, Henri. O Direito à cidade. São Paulo: Moraes, 1991.
MOSTAFAVI, M. e outros. Urbanismo Ecológico en América Latina. Barcelona: Gustavo Gili, 2019, p. 158-159.
RIBEIRO, Ana Clara Torres e outros. Por uma cartografia da ação: pequeno ensaio de método. Cadernos IPPUR. v. 15, n. 2 e Ano XVI, N.1, 2001-02. 
RHEINGANTZ, Paulo Afonso et al. Observando a qualidade do lugar: procedimentos para a avaliação pós-ocupação. Rio de Janeiro, FAUUFRJ, 2009.
SANTOS, Milton. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo: HUCITEC, 1996.
______. GEOgraphia. Ano 1, n. 1, 1999. (Transcrição da Conferência de inauguração do Mestrado em Geografia da Universidade Federal Fluminense e abertura do ano letivo de 1999.)
SENNET, Richard. Construir e Habitar. Ética para uma cidade aberta. Rio de Janeiro: Record, 2018.


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