Outros olhares: tempos e espaços pelo desenvolvimento pleno de crianças e adolescentes

Quais são os tempos e espaços para uma educação integral e inclusiva? Neste artigo, o filósofo Jailson Moreira, um dos mediadores do nosso percurso formativo, discute o papel das OSCs e escolas na promoção de uma aprendizagem sensível e reflexiva. Para o educador, há nessa perspectiva a possibilidade de se criar:

“Um lugar que seja compreendido como um importante elemento de separação e suspensão social. Um espaço não só de aprendizagem e sociabilidade, mas de suspensão de tudo que ocorre fora dali, fora de seus muros, lugar de um tempo para o brincar, para o pensar, para o escutar, para o sonhar, para o estudar, para o experimentar, como um laboratório, como um templo.”

Confira o artigo na íntegra a seguir.

O “olhar para fora” e a missão das OSCs na educação integral e inclusiva de crianças e jovens

Por Jailson Moreira*

“São os passos que moldam e transmutam os lugares”, afirmava o pensador francês Michel De Certeau (1925-1985). Milton Santos (1926-2001) dizia que “o território é o chão e mais a população […], o fato e o sentimento de pertencer àquilo que nos pertence” (SANTOS, 2001).

Na busca de reconhecer e compreender o chão que pisamos, o território que ajudamos a moldar e a identidade que ajudamos a construir, o “olhar para fora” se torna um dispositivo que contribui para a promoção da educação integral e para a inclusão de crianças e adolescentes. 

Antes de mais nada, precisamos refletir sobre quatro instâncias importantes: 

  1. De qual educação estamos falando? 
  2. De qual integralidade estamos tratando? 
  3. De qual escola estamos falando? 
  4. De qual lugar ou organização não governamental estamos tratando? 

Se pensarmos em educação integral e inclusão de crianças e adolescentes, precisamos falar de escola e de organizações da por ventura contribuam ou apoiem a integralidade do ensino. E ao falar de escola e de organizações de apoio à integralidade da educação, é igualmente importante refletir: de qual escola e de qual organização estamos falando? E ainda, que elementos se fixam nessas instâncias e acabam sendo tomados como verdades incondicionais? 

Há elementos muito presentes nesses espaços que se apoderam daquilo que compreendemos como ensino e aprendizagem e a capacidade de sonhar e imaginar, próprios da criança e, de certo modo, esses elementos acabam realizando uma espécie de pacto para a estreiteza.

Um desses elementos é: o descompasso entre o tempo e o contexto social, consequência da ausência desse olhar para fora e da falta de certo reconhecimento identitário. Outro elemento é um discurso que permeia parte do circuito escolar e das organizações da sociedade civil. Segundo esse discurso, essas instituições vivem e praticam certo democratismo pedagógico. No entanto, muitas delas reproduzem uma à outra e mais tratam de garantir que as crianças e adolescentes aceitem a condição de certa submissão cordial, do que fazê-las refletir sobre as próprias realidades.

Desafios da escuta e articulação com o território

Para uma contribuição das OSCs e escolas na construção de uma formação crítica, é fundamental e urgente que se discuta a aprendizagem instrumental. Esta se limita à forma tradicional de ensino, em que professores e educadores são considerados os detentores do saber e as crianças e os adolescentes têm a tendência a reproduzir, de forma sistematizada, a tradição do pensamento ocidental. 

Normalmente, nesse processo de vivência e aprendizagem, o contexto social e dialógico dos estudantes não é considerado, de modo que um modelo universal e vertical de conhecimento se instala. Embora haja ações impressionantes do ponto de vista da estética e do discurso, tanto por parte da escola como por parte das OSCs, muitas ações ainda não buscam superar a pedagogia instrumental.

Mesmo que tenha formado muitos, a razão instrumental não assegura a formação crítica dos indivíduos. Pois é ainda nos espaços tidos como lugares de saberes que, infelizmente crianças e adolescentes confundem processo com substância e ação continuada com essência.

Reafirmado esse desatino, nova lógica sempre entra em cena: a de que, quanto mais longa a escolaridade e a formação social, ou seja, quanto mais tempo dedicado às formações conjuntas entre OSCs e escolas, melhores serão os resultados. Ou a máxima de que o ensino superior levará ao sucesso profissional e financeiro. Nesse sentido, crianças e adolescentes tendem a confundir: ensino com aprendizagem; obtenção de títulos e diplomas com competência; fluência na língua com a capacidade de dizer algo novo.

Mas, a prosseguir nessa perspectiva, corre-se o risco de que, na experiência do que chamaríamos de práticas de ensino e aprendizagem e exercício do pensar e sonhar, tanto no contexto escolar como no contexto da OSC, crianças e adolescentes compreendam, de modo equivocado, a aceitação de serviços em detrimento da reivindicação dos direitos. Assim como, na possibilidade de intersecção com o imaginário social também possam não distinguir: cuidado com a saúde de tratamento médico; melhoria da vida cidadã de assistencialismo; segurança pública e comunitária de proteção policial; sistema de segurança nacional de intervenção militar; e trabalho criativo de concorrência desleal.

O espaço do educar: reflexões e dinâmicas do olhar para fora

Segundo o filósofo húngaro István Mészáros (1930-2017): “uma das principais funções da formação humana no sistema capitalista é a de produzir entre os indivíduos uma conformidade no mais alto grau possível, e tudo isso por meio dos limites institucionalizados e legalmente sancionados” (MÉSZÁROS, 2014).

Desse modo, a narrativa proposta pela ideia de escolarização e integralização da educação, ou seja, o conceito de educação integral, não pode ter a mesma narrativa de dominação e reafirmação daquilo que o sistema capitalista já impõe e que é próprio da sua natureza, ou seja, a realidade cotidiana, social, política e econômica submetida à lógica do registro ideológico permeado pela ideia do lucro maximizado.

Nesse sentido, “olhar para fora” é perceber o lugar onde presença, ausência, ação, tempo, contexto, discurso, diálogo, filosofia e experiência devam ser vividos e pensados.
Devem ser entendidos como metáfora medular, como numa espécie de arena da arte presencial, como um local de atuação de certa experiência de vida, potência e ação pulsantes. 

Meninas e Meninos de ouro. Casa do Rio. Prêmio Itaú UNICEF 2017.
Meninas e Meninos de ouro. Casa do Rio. Prêmio Itaú-Unicef/ 2017

Esse lugar que precisamos “olhar para fora” é o território, esse espaço de força empiricamente validada por seus espectadores, quais sejam: as crianças, os adolescentes, os estudantes, as suas mães, os seus pais, seus avós; os Coletivos de Direito, os Conselhos de Direito institucionalizados; os Movimentos Sociais, os Movimentos de Mulheres, os Movimentos LGBTQI, os Movimentos Negro e Indígena, o Movimento estudantil, o Poder Público. 

“Olhar para fora” é viver uma experiência poética e fenomenologicamente rara; uma espécie de metafísica da presença. E essa presença explicada por ser uma força e, em sendo força, pode ser sentida na relação entre os indivíduos e na intensidade e vigor à exemplo do que ocorre no desempenho cênico, no estado corpóreo do intérprete e sua relação com o espaço cênico. 

Gilles Deleuze (1925-1995) nos diz que “a presença, uma espécie de impulso inseparavelmente contido na natureza humana, força imanente que não limita à potência do corpo ao organismo é a mesma presença que não reduz a força do pensamento à consciência” (DELEUZE, 1997). 

Maraca Tu Maraca Eu,  Associação Sociocultural e Educacional Zabelê/UME Padre Manoel da Nobrega. Prêmio Itaú-Unicef/2018
Maraca Tu Maraca Eu, Associação Sociocultural e Educacional Zabelê/UME Padre Manoel da Nobrega. Prêmio Itaú-Unicef/ 2018

Num lugar de suspensão como pode ser a sala de atividades socioeducativas de uma OSC ou uma sala de aula na escola, ou ainda uma biblioteca, por exemplo, a presença, para além da presença física, deve ser marcada por memórias, pela existência e por tensões estabelecidas no contexto de uma atividade socioeducativa. 

A presença é caracterizada pelo encontro com as crianças e adolescentes e articulada com o espaço, além da memória que tem toda a história de um educador e de um professor e a cada criança e adolescente, ou seja, presença e espaço articulados por uma factual existência e experiência poética e lúdica.

Eu, cidadão, Associação Casa Arte Vida Assistência Social/E.M. Emma D´Ávila de Camillis. Rio de Janeiro/RJ. Crédito da foto: Associação Casa Arte Vida Assistência Social. Prêmio Itaú-Unicef, 2017
Eu, cidadão, Associação Casa Arte Vida Assistência Social/E.M. Emma D´Ávila de Camillis. Prêmio Itaú-Unicef, 2017

Também é preciso considerar que devemos educar “para transformar o que sabemos, não para transmitir o já sabido”. E de que “se alguma coisa nos anima a educar é a possibilidade de que esse ato de educação, essa experiência em gestos, nos permita liberar-nos de certas verdades, de modo a deixarmos de ser o que somos, para ser outra coisa para além do que vimos sendo” (RANCIÈRE, 2014).

Mesmo porque a verdade nada mais é que o estabelecimento de acordos em que já há condições preestabelecidas, e em seus interstícios está um campo de forças importante que se chama poder

Nesse cenário, sendo a experiência e não a verdade o que dá sentido à nossa maneira de educar crianças e adolescentes, é importante que haja um espaço de suspensão, ou seja, torná-lo temporariamente inoperante, tirá-lo da produção, liberando-o de seu contexto normal. Um espaço de suspensão do tempo, um lugar do pensamento, um lugar para a experiência, um lugar do diálogo, um lugar da escuta. 

Um lugar que seja compreendido como um importante elemento de separação e suspensão social. Um espaço não só de aprendizagem e sociabilidade, mas de suspensão de tudo que ocorre fora dali, fora de seus muros, lugar de um tempo para o brincar, para o pensar, para o escutar, para o sonhar, para o estudar, para o experimentar, como um laboratório, como um templo. 

É importante lembrar que crianças e adolescente necessitam de “um tempo de suspensão, mesmo que temporário e num determinado espaço de tempo, para deixarem o passado e os antecedentes familiares como possibilidade de se tornarem crianças e adolescentes como quaisquer outros” (MASSCHELEIN e SIMONS, 2014).  

OSCs e escolas devem ser livres para se desligar das expectativas sociais. Embora possam ser criadoras e reafirmadoras da cultura, não podem se submeter e ser espaço de redenção do mundo nem de sufocamento. É nesses ambientes educativos que primeiro pode ocorrer o exercício da argumentação democrática, pois normalmente as práticas de democracia ocorrem em lugares separados, suspensos. E é também nesses dois lugares que a ideia de bem público, das coisas que são tornadas bem público pode ser reconhecida, além da constituição do senso de uso comum. 

Bibliotecas Comunitárias. Centro de Integração de Redes Sociais e Culturas Locais - CIRANDAR. Prêmio Itaú UNICEF, 2018
Bibliotecas Comunitárias. Centro de Integração de Redes Sociais e Culturas Locais – CIRANDAR. Prêmio Itaú UNICEF, 2018

Nessa perspectiva, escolas e OSCs, juntas, tornam-se espaços de igualdade. Desse modo, a repulsa a elas é uma contradição democrática, uma oposição ao diálogo e uma objeção à escuta. Uma repulsa a elas é um ódio à diversidade e à diferença na igualdade. 

Nesse lugar de suspensão, arroubamento do tempo e do espaço, distanciamento temporário da família, do trabalho infantil, da desordem e da violação dos direitos para crianças e adolescentes que o sentido e o significado de uma escola e de uma OSCs não podem ser adaptados ou moldados, pois molde e adaptação são elementos simbólicos da fábrica.

Nos seus sentidos e significados, escolas e OSCs não podem incorrer em molde ou se sujeitar a ele, pois, de todas as instituições sociais, talvez elas ainda sejam as únicas capazes de permitir a suspensão e a diferenciação perante a ideia de produção e a se contrapor ao registro ideológico do sistema capitalista.

É ainda na escola e na OSC, uma por meio da ideia do ensino e aprendizagem e a outra por meio da experiência, mais do que no sentido de verdades, que ainda encontramos a essência e significado de educação e formação humana. Nesses dois lugares, ainda com muito esforço e reflexão crítica, é possível impedir que crianças e adolescentes sejam objetos da metáfora do modelo fordista de produção

Portanto, conceber a ideia de parceria entre escolas e OSCs, na perspectiva de uma educação integral, resulta substancialmente em realizar uma interrupção, uma interrupção quase que diariamente temporária, e quando isso ocorre há uma trégua das tarefas e funções que governam a vida de crianças e adolescentes em territórios vulneráveis. Vida doméstica, trabalho infantil e toda forma de violência se tornam inoperantes, e temporariamente todos os que participam dessa parceria são tirados da submissão da produção e da lógica do contexto social formal. 

Irupê - Espaços de Cidadania. Lar Fabiano de Cristo - Casa de José. Prêmio Itaú-Unicef 2018
Irupê – Espaços de Cidadania. Lar Fabiano de Cristo – Casa de José. Prêmio Itaú-Unicef 2018

Talvez essa suspensão possa levar as crianças e adolescentes a prescindir momentaneamente do pensamento racional, possibilitando que a parceria entre escolas e OSCs, os seus conteúdos e a representação do que seria uma experiência lúdica e saudável levem a um tipo de despertar.

Conduzir as novas gerações a uma forma de estímulo e de ação dialogada, perspectivando elaborações de pensamentos que lhes permitam modelar e remodelar suas percepções de mundo. Percepções dialogadas que os levem a uma espécie de caminho na contramão do pensamento dado de forma instrumental e possam se desenvolver como pessoas críticas, saudáveis e felizes, ou seja, simplesmente crianças e adolescentes.


Jailson Moreira
Jailson Moreira

* Graduado e licenciado em Ciências Sociais e Filosofia, Mestre em Antropologia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), Especialista em Sócio-Psicologia pela Faculdade de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP) e doutorando em Filosofia pela  Universidade Federal do Paraná (UFPR) com os temas: a relação entre experiência e subjetividade, experiência e educação e o movimento entre filosofia, poesia, arte e educação, na perspectiva de um laboratório de pensamento.

Referências

DELEUZE, Gilles. Crítica e clínica. São Paulo: Ed. 34, 1997.

MASSCHELEIN, Jan; SIMONS, Maarten. Em defesa da escola – Uma questão pública. Belo Horizonte: Autêntica, 2014.

MÉSZÁROS, István. A educação para além do capital. In: Territórios de Filosofia, 2014. Disponível em: https://territoriosdefilosofia.wordpress.com/2014/07/11/a-educacao-para-alem-do-capital-istvan-meszaros/. Acesso em: 5 nov. 2020.

RANCIÈRE, Jacques. O mestre ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual. Belo Horizonte: Autêntica, 2014.

SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. Rio de Janeiro: Record, 2001.

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